Os Remédios do amor, e o amor sem remédio - III

O terceiro remédio do amor é a ingratidão.
Assim como os remédios mais eficazes são os mais fortes e violentos para o nosso corpo, assim a ingratidão é o remédio que mais nos atinge e é o mais forte deles. O tempo diminui o amor, a ausência o esfria, já a ingratidão converte o amor em aborrecimento. O tempo é natureza, a ausência pode ser força, a ingratidão sempre é delito. Se ponderarmos os efeitos de cada um destes contrários, acharemos que a ingratidão é o mais forte. O tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo. De sorte que o amigo, por ser antigo, ou por estar ausente, não perde o merecimento de ser amado; se o deixamos de amar não é culpa sua, é injustiça nossa; porém, se foi ingrato, não só ficou indigno do amor, mas merecedor de todo o ódio. Finalmente, o tempo e a ausência combatem o amor pela memória, a ingratidão pelo entendimento e pela vontade. E ferido o amor no cérebro, e ferido no coração, como pode viver?

A natureza e a arte curam contrários com contrários. Sendo, pois, a ingratidão o maior contrário do amor, quem duvida que este terceiro remédio seria também o mais eficaz, para extinguir de todo, ou para mitigar o amor de Cristo? A ingratidão é com o amor assim como o vento é com o fogo: se o fogo é pequeno, apaga-o o vento; se é grande, acende-o mais.

Mais ofendido foi Cristo que qualquer outra pessoa, maiores ingratidões usaram com ele os homens, mas nenhuma e nem todas juntas foram suficientes para lhe remitirem um ponto o amor, nem vivo, nem morto. Aquelas palavras: “os seus que estavam no mundo” parecem supérfluas, e mais limitam do que englobam o amor. Cristo, Senhor e Redentor nosso, como Senhor e Redentor de todos os homens, não só amou aos que estavam no mundo, senão também aos que não estavam. Não só amou os presentes, senão os passados e os futuros, porque por todos os que eram, foram e haviam de ser, deu o preço de seu sangue. Mas nesta passagem, Jesus se refere somente aos que estavam no mundo porque estes foram os mais ingratos. Os futuros ainda não eram, os passados, pela maior parte, não conheceram a Cristo; os presentes conheceram-no, ouviram sua doutrina, viram seus milagres, receberam seus benefícios, e como lhe pagaram? Deixando-o, negando-o, vendendo-o, crucificando-o.
Pode haver respostas mais desiguais, mais contrárias, mais ingratas? Não pode. Mas não podendo as ingratidões serem maiores, tiveram tão pouco poder contra o amor de Cristo, que assim como dissemos dos outros remédios, em vez de as ingratidões o diminuírem, aumentaram, e em vez de serem remédio para aborrecer, foram motivo para mais amar.

Quando os filhos de Israel caminhavam pelo deserto para a Terra de Prometida, acompanhava-os milagrosamente uma pedra, da qual saíam ribeiras de água, com que o povo matava a sede. Paulo dizia que esta pedra era Cristo, mas por quê? A Bíblia fala que Moisés feriu duas vezes a pedra com sua vara, e dela saíram águas. O natural de uma pedra quando lhe dão golpes, é lançar de si faíscas de fogo; e esta pedra sendo ferida duas vezes, em vez de responder com fogo, se desfez em água. Esta pedra não era pedra, era Cristo! Veremos agora este mesmo milagre, não só repetido, mas verificado. Dois golpes deram naquela pedra divina no dia em que Cristo foi crucificado; com dois golpes dois homens de quem merecia um diferente tratamento, feriram seu coração. Um golpe foi dado por Judas, que o vendeu, o foi Pedro, que o negou. E o que aconteceu? Um milagre de amor verdadeiramente divino! Em lugar de sair da pedra fogo, castigo merecido dos infiéis, saiu água com que por suas próprias mãos, lhes lavou os pés.

Como o Senhor, que tudo sabe está vendo, os pés de Judas? Os pés de Pedro? Não são os pés de Pedro aqueles pés covardes que irão te seguir de longe? Não são os pés de Pedro aqueles pés desleais que o hão de levar ao paço, onde o há de negar três vezes? Os pés de Judas não são aqueles pés infiéis que deste mesmo lugar hão de partir a vender-vos? Os pés de Judas não são aqueles pés traidores que hão de guiar seus inimigos para te prender no Horto? Porque diante de pés tão indignos Jesus está prostrado de joelhos? Estes pés lava com as próprias mãos?
Porque nesses dois homens andou a ingratidão mais refinada, por isso com eles se mostra o vosso amor mais fino. Esta é a qualidade soberana do coração de Cristo, e assim se mudam e trocam nele as ingratidões dos homens. Os agravos se trocam em benefícios, as injustiças em misericórdias.

Sendo, pois, a crucificação a mais cruel e desumana ingratidão que jamais se cometeu nem podia cometer no mundo, foi também convertida em maior benefício. Não há dúvida que, assim como o ser humano chegou ao extremo da sua ingratidão, assim o amor foi o maior extremo com que a podia corresponder a benignidade divina. E se este é o modo com que Cristo vinga os agravos, e esta a moeda com que paga as ingratidões, como podia este remédio sarar o seu amor, ou fazer com que deixasse de amar os seus por mais que lhe fossem ingratos?

"Nada vai me separar do teu amor, nada vai me separar de ti Senhor!"

"Se somos infiéis, ELE permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo."

( 2 Timóteo 2:13)

Que Deus abençoe vocês!

(Sermão do Mandato)